café da manhã com arranha-céus por Daniele Crystine

sonhei com Ana na antecâmara
caras e bocas no filme de celofane
fi-lo-so-fi-ca-men-te
[interrompi o sonho pra dizer bobagens em ouvido alheio]
mas tenho urgência de voltar pra Ana
marcas fundas no lábio entreaberto
pose que não dá prêmio
elegância demais pro meu bom gosto
bom bom
ela sorri
eu afogo

Teu corpo é
Um poço sem frestas.
Eu não quero sair.

não posso ler
poemas de amor
me farfalho lancinante
me lancino farfalhante
ela não virá
nunca mais
avesso

a palavra fica em cima
da corda bamba
quando eu leio quer cair se cai
meu coraçãozinho se esborracha
ai, essa vida de intelectual
essa panca de intelectual
essa pose
me passa

cafearranhaceus1.jpg

A tristeza me abate feito um boi.

o café na xícara preto,
preto mil olhos em mim
espuma branca
branca, branca
buraco negro

lembra-me um rio
que cor?
espuma branca
tampa vermelha
lata vazia de sardinha
aberta

o mundo debaixo do rio
o mundo debaixo do café
mil olhos e organismos vivos
mergulhados em água
de cor mutante
tecem sua vida
ao sabor da corrente

a espuma morte, vida, lixo
é que separa
o dito, o não-dito

o que surge debaixo
da água turva
é o mundo
que sorvo em goles pequenos
inundada por dentro
contaminando lento
o corpo
e todos os órgãos internos

 

daniele cristyne 3
Daniele Cristyne é performer e poeta. Graduada em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná e estudante de Letras na Universidade Federal do Paraná. Faz da escrita um modo de vivência investigativa através das sensações e relações do corpo e do mundo. Edita e participa de publicações independentes.

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